Intervenção de Francisco Melo

Alguns aspectos do legado teórico<br>de Álvaro Cunhal sobre a política de alianças

Na pros­se­cução do seu ob­jec­tivo de eman­ci­pação da classe ope­rária, dos tra­ba­lha­dores e do povo do jugo do ca­pital, o PCP con­si­dera, na base das aqui­si­ções his­tó­ricas do mar­xismo-le­ni­nismo, o sis­tema de ali­anças como uma questão es­sen­cial.

Re­flec­tindo sobre a po­lí­tica de ali­anças es­crevia Álvaro Cu­nhal que as ali­anças es­tra­té­gicas tendo em vista o ob­jec­tivo da re­vo­lução so­ci­a­lista não podem ser postas em causa por ali­anças tác­ticas re­la­tivas a um dado pe­ríodo his­tó­rico de um país nem muito menos estas úl­timas podem pre­tender con­verter-se na­quelas. Mas ano­tava também que «as ali­anças “es­tra­té­gicas” não devem ser in­vo­cadas como im­pe­di­tivas de ali­anças “tác­ticas”», mais ou menos du­ra­douras.

Uma outra con­si­de­ração de Álvaro Cu­nhal que que­remos aqui evocar diz res­peito à cor­recção, cre­di­bi­li­dade e efi­cácia do sis­tema de ali­anças na sua re­lação ne­ces­sária com a si­tu­ação eco­nó­mica, so­cial e po­lí­tica. Elas de­pendem di­rec­ta­mente do facto do es­ta­be­le­ci­mento dessas ali­anças ser feito, como in­dica Álvaro Cu­nhal, «com plena cons­ci­ência dos in­te­resses de classe que estão em jogo, das ra­zões e do valor dos ob­jec­tivos co­muns que su­peram di­fe­renças e con­tra­di­ções e de­ter­minam a acção num mo­mento, fase ou etapa do pro­cesso re­vo­lu­ci­o­nário».

É esta cons­ci­ência que deve pre­sidir aos ne­ces­sá­rios com­pro­missos da classe ope­rária com ou­tros par­tidos in­cluindo os par­tidos bur­gueses, com­pro­missos e en­ten­di­mentos de que, como dizia Lé­nine e o lembra Álvaro Cu­nhal, «toda a his­tória do bol­che­vismo, antes e de­pois da Re­vo­lução de Ou­tubro, abunda em exem­plos». Re­jeitá-los em abs­tracto, por não terem por ob­jec­tivo a re­vo­lução so­ci­a­lista, seria con­denar a classe ope­rária ao iso­la­mento, ao aten­tismo e no fim de contas ao se­gui­dismo.

E é essa mesma cons­ci­ência que im­pede, por outro lado, que na busca de en­ten­di­mento para a uni­dade na acção prá­tica se res­vale para a «po­sição tí­pica do opor­tu­nismo» que Álvaro Cu­nhal, ci­tando no­va­mente Lé­nine, ca­rac­te­riza como con­sis­tindo em «pôr à margem» aquilo que é o «ob­jec­tivo úl­timo», ou seja, con­si­derar o ob­jec­tivo da re­vo­lução so­ci­a­lista como an­ti­téc­tico da re­vo­lução de­mo­crá­tica e na­ci­onal, para nos si­tu­armos no con­texto his­tó­rico em que Álvaro Cu­nhal es­creve.

Igual­mente rica de con­teúdo para a pros­se­cução da po­lí­tica de uni­dade é a con­cepção sobre o papel e al­cance das lutas por ob­jec­tivos eco­nó­micos, por ob­jec­tivos ime­di­atos, que Álvaro Cu­nhal em vá­rias oca­siões expõe. Numa delas, evo­cando a ex­pe­ri­ência re­co­lhida por Lé­nine da re­vo­lução russa de 1905 acerca da fun­da­mental im­por­tância da luta eco­nó­mica na mo­bi­li­zação e na edu­cação po­lí­tica das massas, Álvaro Cu­nhal dá uma abran­gência sócio-po­lí­tica ao en­si­na­mento ex­traído por Lé­nine que jul­gamos dever ser ano­tada, não só pelo que em si sig­ni­fica mas também pela sua ac­tu­a­li­dade. Diz-nos ele que não é apenas «pelo que re­pre­sentam no de­sen­vol­vi­mento do pro­cesso re­vo­lu­ci­o­nário» que o Par­tido «sa­li­enta a im­por­tância das lutas de massas com ob­jec­tivos con­cretos ime­di­atos», mas é também por elas serem es­sen­ciais «para de­fesa de in­te­resses vi­tais dos tra­ba­lha­dores, para fazer frente à ex­plo­ração, para im­pedir a de­gra­dação das con­di­ções de vida e con­se­guir me­lhorá-las».

Por vezes, há quem, pre­tex­tando pre­tensos ob­jec­tivos re­vo­lu­ci­o­ná­rios, es­queça esta im­por­tante di­mensão hu­ma­nista e con­si­dere de forma me­ra­mente ins­tru­mental a si­tu­ação de vida mi­se­rável dos tra­ba­lha­dores a que a «aus­te­ri­dade» ca­pi­ta­lista os quer con­denar e cuja acei­tação os con­ver­teria, como alertou Marx, numa «massa ni­ve­lada de mi­se­rá­veis do­mes­ti­cados sem sal­vação» e os «des­qua­li­fi­caria para o em­pre­en­di­mento de qual­quer mo­vi­mento mais amplo». A luta – dura, per­sis­tente, or­ga­ni­zada e de classe – em de­fesa dos in­te­resses con­cretos dos tra­ba­lha­dores e do povo é subs­ti­tuída por eles pela pro­cla­mação verbal sec­tária pai­rando acima do ter­reno real do con­fronto de classes.

O ra­di­ca­lismo pe­queno-bur­guês que Álvaro Cu­nhal con­tun­den­te­mente ca­rac­te­rizou, aban­donou hoje o fato de ma­caco que pe­dira em­pres­tado e uni­ver­si­ta­ri­a­mente en­far­pe­lado ou pla­nando «ima­te­rial» nas nu­vens in­ter­náu­ticas tra­balha para o re­sul­tado de sempre: os ata­ques ao PCP, o iso­la­mento dos tra­ba­lha­dores e a des­mo­bi­li­zação para a acção prá­tica con­gre­gando os es­forços de todos quantos an­seiam li­bertar-se da ex­plo­ração cada vez mais ra­pace do ca­pi­ta­lismo na sua fase im­pe­ri­a­lista.

Luta ide­o­ló­gica

Num outro texto, Álvaro Cu­nhal sa­li­enta ainda mais um as­pecto dessas lutas: que elas não são apenas uma ta­refa do Par­tido «na sua qua­li­dade de van­guarda da classe ope­rária», mas são também ta­refa da classe ope­rária «na sua qua­li­dade de força so­cial de van­guarda do pro­cesso de trans­for­mação so­cial». Ambos visam o que é es­sen­cial para a con­cre­ti­zação, con­so­li­dação e alar­ga­mento da po­lí­tica de ali­anças: a de­fesa de­ci­dida «dos in­te­resses de todas as ou­tras classes e ca­madas la­bo­ri­osas, de todas as ou­tras classes e ca­madas cujos in­te­resses são atin­gidos pela po­lí­tica das classes do­mi­nantes e cujos ob­jec­tivos e as­pi­ra­ções coin­cidem ou con­vergem com os da classe ope­rária».

Foi o que acon­teceu, como Álvaro Cu­nhal pôde afirmar, «Na re­vo­lução por­tu­guesa do 25 de Abril, no pro­cesso de ins­tau­ração do re­gime de­mo­crá­tico e na re­sis­tência às ofen­sivas contra-re­vo­lu­ci­o­ná­rias.» Mas se isso é uma ver­dade his­tó­rica in­con­tes­tável, não se segue daí au­to­ma­ti­ca­mente que «as classes e ca­madas so­ciais cujos in­te­resses vi­tais são gra­ve­mente atin­gidos pela po­lí­tica do PS e dos par­tidos re­ac­ci­o­ná­rios e de­fen­didos pelo PCP es­tejam a esse res­peito es­cla­re­cidas», su­bli­nhava Álvaro Cu­nhal. E cons­ta­tava como prova disso: «A re­a­li­dade é que, em larga me­dida, contra os seus pró­prios in­te­resses, têm vo­tado no PS e nos par­tidos re­ac­ci­o­ná­rios e par­ti­lham de re­servas e sen­ti­mentos an­ti­co­mu­nistas.» Daí re­sul­tava que a ac­ti­vi­dade po­lí­tica de­sen­vol­vida pelo PCP ti­vesse (e tem) «um apoio so­cial mais vasto que o seu elei­to­rado», con­tra­ri­a­mente ao PSD e ao PS que go­zavam (e gozam) de «um apoio elei­toral mais vasto que o apoio so­cial às po­lí­ticas que de­fendem e aplicam».

Esta não cor­res­pon­dência entre os in­te­resses ob­jec­tivos das classes e ca­madas so­ciais que co­lidem com a po­lí­tica ao ser­viço dos mo­no­pó­lios le­vada a cabo pelo PS e pelos par­tidos da di­reita, juntos ou se­pa­rados mas con­ver­gindo no es­sen­cial, e o com­por­ta­mento sub­jec­tivo tra­du­zido na vo­tação nos par­tidos que con­duzem uma tal po­lí­tica, cons­ti­tuía (e cons­titui) um «real obs­tá­culo» a que a ar­ru­mação das forças po­lí­tico-par­ti­dá­rias ex­pres­sasse (e ex­presse) a ar­ru­mação das forças so­ciais, con­cre­ti­zando uma po­lí­tica de ali­anças abrindo ca­minho a uma al­ter­na­tiva de­mo­crá­tica.

Na pers­pec­ti­vação do en­fren­ta­mento e da ul­tra­pas­sagem deste obs­tá­culo men­ci­o­na­remos al­guns con­tri­butos de ori­en­tação po­lí­tica que po­demos ras­trear nos textos de Álvaro Cu­nhal.

Um deles res­peita à acui­dade acres­cida de que se re­veste a luta ide­o­ló­gica como ins­tru­mento de sub­tracção das massas po­pu­lares à in­fluência ma­ni­pu­la­tória da ide­o­logia das classes do­mi­nantes. Estas, dis­pondo de po­de­ro­sís­simos meios ma­te­riais de pro­dução e di­fusão ide­o­ló­gica, pro­curam pro­vocar um efeito in­te­grador no sis­tema ca­pi­ta­lista com a apre­sen­tação, no dizer de Marx e En­gels, do «mundo em que do­minam como o me­lhor dos mundos», por­tanto como sendo o único pos­sível! A obli­te­ração a que a re­a­li­dade ob­jec­tiva se re­flicta na cons­ci­ência das classes ex­plo­radas de uma forma não mis­ti­fi­cada, não ali­e­nada, im­pe­di­tiva de que se pro­cesse uma coin­ci­dência dos in­te­resses das classes e ca­madas so­ciais com as leis ob­jec­tivas do de­sen­vol­vi­mento so­cial, en­for­mava (e en­forma) como pano de fundo toda a luta po­lí­tica.

E, por isso, numa si­tu­ação de blo­que­a­mento a nível po­lí­tico-par­ti­dário da in­dis­pen­sável acção uni­tária das forças de­mo­crá­ticas, Álvaro Cu­nhal apon­tava a ne­ces­si­dade de «travar uma ver­da­deira ba­talha de es­cla­re­ci­mento» vi­sando «con­vencer mis­ti­fi­ca­dores e ilu­didos» de que o PS — «com a sua ori­en­tação ac­tual, com a sua po­lí­tica ac­tual que se iden­ti­fica com a do PSD em ques­tões fun­da­men­tais, com o seu co­la­bo­ra­ci­o­nismo e ali­anças efec­tivas com a di­reita, com a sua pre­tensão de al­cançar a mai­oria ab­so­luta e go­vernar so­zinho, com a sua sis­te­má­tica re­cusa a uma ali­ança à es­querda, a uma ali­ança com o PCP» — não po­deria nem cons­ti­tuir por si uma al­ter­na­tiva nem con­tri­buir para en­con­trar reais so­lu­ções po­lí­tico-par­ti­dá­rias para en­frentar os pro­blemas que afec­tavam (e afectam) os tra­ba­lha­dores, o povo e o País.

Mas Álvaro Cu­nhal, além disso e numa pers­pec­tiva muito mais ampla, apon­tava a ne­ces­si­dade de que, na luta po­lí­tico-ide­o­ló­gica contra a po­lí­tica de di­reita, o con­fronto fosse tra­vado «no nosso pró­prio ter­reno». E ex­pli­ci­tava: «O ter­reno da ver­dade dos factos. Da ex­pli­cação dos fe­nó­menos e ati­tudes. Dos in­te­resses con­cretos dos tra­ba­lha­dores, do povo, do País. Das so­lu­ções que pro­pomos. Da li­gação es­treita e ac­tu­ante com as massas po­pu­lares, com os seus in­te­resses, pro­blemas e as­pi­ra­ções.»

Álvaro Cu­nhal pro­pug­nava, assim, uma ofen­siva ide­o­ló­gica cons­tru­tiva in­se­rida na di­nâ­mica de uma ampla acção uni­tária. A sua «di­recção de­ter­mi­nante» con­sistia, e ci­tamos, em «pro­mover a luta dos tra­ba­lha­dores, dos agri­cul­tores, dos in­te­lec­tuais e qua­dros téc­nicos, dos pe­quenos e mé­dios em­pre­sá­rios, dos re­for­mados, dos de­fi­ci­entes, da ju­ven­tude, das mu­lheres, dos mais va­ri­ados sec­tores so­ciais atin­gidos pela po­lí­tica de di­reita»; em «con­tri­buir para re­forçar e di­na­mizar os mo­vi­mentos e or­ga­ni­za­ções uni­tá­rias de massas com re­levo para o mo­vi­mento sin­dical uni­tário»; em «re­forçar e am­pliar os laços de co­o­pe­ração e acção com todos os sec­tores de­mo­crá­ticos […] em­pe­nhados numa vi­ragem de­mo­crá­tica».

Re­forço do PCP

Com a si­tu­ação no plano na­ci­onal vi­eram in­ter­ferir fac­tores ex­ternos de um modo cada vez mais con­di­ci­o­nante da­quela, alar­gando o âm­bito da frente so­cial de luta. A esse res­peito ob­ser­vava Álvaro Cu­nhal: «Nos países menos de­sen­vol­vidos […], cujos in­te­resses na­ci­o­nais e a in­de­pen­dência na­ci­onal e so­be­rania são sa­cri­fi­cadas aos in­te­resses e im­po­si­ções dos mais po­de­rosos e aos po­ten­tados do ca­pital fi­nan­ceiro in­ter­na­ci­onal, os sen­ti­mentos na­ci­o­nais e a de­fesa dos in­te­resses na­ci­o­nais, traídos por go­vernos obe­di­entes ao es­tran­geiro, po­derão pro­vocar uma re­ar­ru­mação das forças po­lí­ticas e so­ciais, novos sis­temas de ali­anças e vir a as­sumir um ca­rácter pa­trió­tico, de­mo­crá­tico e pro­gres­sista.» Diga-se, para cla­ri­ficar, que por «novos sis­temas de ali­anças» não é de en­tender que cessam a sua vi­gência e va­li­dade os an­te­ri­or­mente pros­se­guidos, mas que se lhe acres­centam novos com a en­trada em cena de sec­tores so­ciais de­mo­crá­ticos e pa­trió­ticos atin­gidos pela sub­missão aos di­tames da in­te­gração ca­pi­ta­lista eu­ro­peia e do im­pe­ri­a­lismo norte-ame­ri­cano. Mas isso é ma­téria que o ca­ma­rada Je­ró­nimo de Sousa cer­ta­mente de­sen­vol­verá.

Pela minha parte con­cluo di­zendo que, como os sulcos ras­gados pela re­vo­lução por­tu­guesa do 25 de Abril nos en­sinam, é do poder trans­for­mador da vasta frente so­cial de luta exis­tente, in­se­pa­rável da in­ter­venção de­ci­siva de um PCP re­for­çado, que podem emergir as so­lu­ções po­lí­tico-par­ti­dá­rias des­blo­que­a­doras de um rumo de eman­ci­pação eco­nó­mica, so­cial, po­lí­tica e na­ci­onal do nosso povo e do nosso País.


Sub­tí­tulos da res­pon­sa­bi­li­dade da Re­dacção

 



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